segunda-feira, 23 de março de 2009

Vida de cão


(Juca, o cão filósofo, acordou de madrugada e se deparou com a porta aberta. Como estava apertado para fazer suas necessidades, e como cão educado que é, resolveu dar um breve passeio pela rua. Desceu as escadas do prédio e, sorrateiramente, se projetou para fora do edifício por uma das frestas da grade. De súbito, um cheiro interessante atingiu seu sensível focinho, e ele se permitiu estender o passeio para além das necessidades fisiológicas que rapidamente resolveu assim que chegou ao primeiro poste. Resolveu aproveitar a insônia para conhecer como o mundo se mostra numa madrugada qualquer. Ele sai pela rua, sempre à esquerda em relação ao prédio em que mora, e vai reto sem se preocupar muito com a distância. Anda por alguns minutos até chegar a uma praça. Repara que algumas pessoas dormem em condições precárias, e se surpreende com o fato de que, mesmo ele, um simples cachorro, possui melhores condições de vida. Sim, ele está sentindo a dor da humanidade em seu coração canino, o que o faz ficar parado, por algum tempo, observando aquele quadro estático composto pela praça, árvore e pessoas, e tentando encaixá-lo em alguma de suas metáforas mentais. No fundo ele apenas quer compreender o mundo. Sente alguns pingos de água vindos de cima, e presume ser chuva. Guiado pelo seu olfato apurado, corre de volta em direção ao prédio em que mora, mas para em alguns lugares estratégicos para marcar seu território. De volta à sua casa, percebe que todos ainda dormem. Ele se dirige à cama confortável na qual dorme toda noite, mas antes de subir se chacoalha um pouco para tirar aquela pouca água de chuva acumulada. Deita no cantinho de travesseiro que lhe deixaram e demora alguns segundos para alcançar estágios mais profundos do sono, tempo suficiente para ouvir a chuva apertar do lado de fora. Instantes antes do sono definitivo, vem à sua memória de cachorro a imagem daquelas pessoas da praça, às quais caberia melhor a expressão “vida de cão”).

Joaquim acordou. Eram sete e pouco da manhã. Sua cama, ligeiramente suja, encontrava-se molhada de água de chuva. Ele estava deitado na relva, separado da vegetação por finas camadas de um papelão macio e pútrido. Lia-se no papelão “super mega hiper eletrônico, potência máxima”, “este lado para cima”, e havia um pequeno pedaço da etiqueta contendo o preço, na qual só havia restado os zeros do valor total.Como na vida de Joaquim, só havia restado zeros.

Ele se levantou, já com o sol sobre o corpo de cor escura, não se sabe se por sujeira ou outro motivo qualquer. Carros se amontoavam no entorno da praça, num padrão desordenadamente harmônico.

Como não havia sinal de chuva, não havia sinal de banho.

Ele foi até a árvore que ficava na porção sul da pequena praça. Diz-se porção sul porque não há outra maneira de referir-se aquele ponto qualquer daquela praça qualquer, e que pouco importaria se estivesse no norte ou oeste. Quis o acaso que estivesse no sul, e isso nos basta. Estava lá Joaquim sob a sombra da pequena árvore, sentindo a acidez estomacal inundar seu corpo com uma sensação absurda de fome.Não se lembrava da última refeição.

O sinal fecha, e Joaquim vê um carro com crianças da sua idade parado na segunda fila. Elas são gordinhas, e comem deliberadamente os mais diversos tipos de doces e quitutes. A mãe fala ao celular, absorta. Decerto estaria conduzindo os filhos à escola.

Seria mesmo a mãe ou uma reles motorista?

Não. Deveria ser a mãe. Joaquim era pobre, sujo, esfomeado, mas não era burro. Toda aquela pompa, maquiagem, postura e superficialidade são características de pessoas de extrato social superior ao dele. Uma motorista se comportaria de forma diferente, usaria palavras diferentes, e certamente estaria mais preocupada com as crianças. Ela se vira para atrás, profere alguns palavrões seguidos de um “cala a boca”, e volta à sua conversa animada no seu celular de última geração.

Sim, era a mãe. Agora não restavam dúvidas.

Como o sinal mantinha-se fechado, e de nada adiantaria tornar-se verde pois o trânsito cuidaria de preservar a inércia, ele resolveu se dirigir ao carro. Porém, a cada passo que dá vê a janela fechar-se um centímetro, de forma diretamente proporcional. Ele corre. Alcança o automóvel com um pequeno espaço ainda aberto da janela, que lhe permite manter algum contato, e pede por um pouco de comida. A mãe, ou melhor, a mulher que Joaquim supunha ser a mãe, desesperada de medo, atira os restos dos quitutes dos filhos na direção do menino, que vê seu café da manhã atingi-lo no peito e se espalhar pelo chão da rua. As migalhas aleatoriamente espalhadas pelo chão não serão reorganizadas para formar aquele último pedaço de bolo que, há poucos segundos, estava nas mãos daquela obesa criança.

Ele se ajoelha, em meio a todos os carros que agora se movem, e arrasta suas mãos pelo asfalto negro em busca do máximo de migalhas que conseguir recolher, levando-as à boca em seguida. O gosto de açúcar mistura-se à fuligem, ao piche, mas transmite um tênue aspecto doce àquela vida amarga.

Joaquim acorda sentindo pequenos objetos atingindo seu corpo. Está chovendo. Ainda é noite. Um papelão outrora seco o separa da relva. Com fome, pelo menos há chuva. Hoje é dia de banho.

domingo, 22 de março de 2009

Sobre um mundo de animais




(Hoje acordei permeado de um sentimento de grandeza. Por isso vim aqui, escondido, usar o notebook que esqueceram no chão para escrever sobre temas grandiosos. Grandes como a humanidade, como a natureza de tudo o que é humano. E cheguei a conclusão que há muito de irracional na racionalidade humana. As vezes vocês se parecem muito mais comigo do que eu com vocês. Engraçado, quero rir e não sei como. Mas estamos aqui, no mesmo mundo (ou no mesmo barco, para ficar metaforicamente mais interessante e acessível), e portanto sujeitos às mesmas conseqüências desta irracionalidade que partilhamos. Escravos eternos dos nossos instintos)

O que sinto eu neste momento?

Seria vontade de escrever sobre um motivo grandioso, guerras, crises?

Ou mais me importa o que se trava nos limites do meu ser?

Há alguma coisa além destes limites tênues, subjetivos?

As pessoas continuarão morrendo e se matando pelos motivos mais pífios. E meu assombro com o mundo se esvai a cada gota de sangue que se derrama.

Somos animais.

Todos nós, cachorros e humanos, não passamos disto.

Não podemos negar nossa natureza irracional, instintiva.

Queremos poder.

Queremos poder mais.

Queremos ser o macho alfa do bando.

A paz, a igualdade e todo o sonho do conceito de “bem comum” existe, e é praticado, de acordo com os interesses, aliás, na medida direta dos interesses de quem detém o comando.

Se é bom a eles, aos poucos que mandam, e se não ameaça o status quo, o establishment, é bom pra todos.

O tal "bem comum" é um oligarca.

E a história continuará a ser contada pelos vencedores.

Pois quem morre não pode mais falar.