segunda-feira, 22 de junho de 2009

O Mesmo Diferente


E hoje, o “de sempre” se desfez em formas estranhas.
Os azulejos e o branco da parede eram estranhamente iguais a ontem, mas diferentes.

Engraçado como existe instantes em que o corpo se inunda com esta sensação de estranheza, de peculiaridade, mesmo quando o contexto é o mesmo.

Mesmo quando o cinza do céu é o mesmo maldito cinza de todos os dias, de todos os céus.

Sim, a chuva cai fina lá fora, mas isso não vai impedir que eu me aventure no chão molhado do quintal.

Mas não, não incomodarei você com histórias destas minhas (pretensas) aventuras.

Quem verei ou ouvirei hoje, lá fora, não importa.

Serão todos os mesmos.

Diferentes, mas iguais.

Quiçá eu conseguisse encontrar as palavras que me permitissem descrever a sensação que brota da minha pele neste momento.

No instante que separa cada segundo que aquele velho relógio da parede computa, incansavelmente, sinto-me conectado com este todo que me circunda.

É neste pequeno intervalo de tempo, como se aquele ponteiro mais fino e comprido, que pulsa, ficasse parado, pelo longo vão que separa este segundo do próximo, que me perco na imensidão do mundo.

Da vida.

Uma vida em pausa.

Quantas sensações em tão pouco tempo.

Um estrondo.

Uma explosão para a qual já se inventaram palavras para descrevê-la, mas minha pobre mente de cachorro não possui a iluminação necessária para combiná-las.

E não importa se hoje estou deitado ou sentado.

Não há variável neste ambiente amorfo que valha uma letra deste texto.

O que importa, e inspira, é esta singularidade.

O que importa é a mesmice de tudo.

Hoje, até as diferenças são iguais.

E não há parâmetro que me diferencie do mundo.

Sou nele o que ele me é.

O mesmo diferente de sempre.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Aos amigos, tudo


E lá estava ela, deliciosamente banhada na luz clara e amarelada que desce do sol nesta manhã fria. O céu aberto, e azul, contribui sobremaneira para esta preguiça marota que me domina quase que por completo. Estou aqui deitado, sob as últimas telhas da varanda, perto do pote de ração que já teve dias mais cheios...

O bom de ser cachorro é justamente viver apoiado sobre o “tripé da felicidade”: comida – descanso – diversão. Aqui do alto, sobre a base sólida que o tripé me proporciona, abarco-me em minha própria auto-suficiência de contentamento, haja vista o pleno acesso à fonte inesgotável de felicidade que disponho.

E quando opto pela não-felicidade, o faço por vontade própria e por necessidade conceitual. A tristeza ou algum outro estado “negativo” de espírito são necessários para que a felicidade exista, da mesma forma que o sol e o céu azul de hoje me encantam, porque ontem só choveu.

Toda esta confusão de adjetivos nada mais é do que a nossa simples tentativa de ver sentido nas coisas, nas pessoas. Na vida, no mundo e nas relações que estabelecemos com um e com outro.

Aliás, é justamente no instante em que exerço esta minha opção que mergulho automaticamente em pensamentos e questionamentos, na tentativa de compreender o que é a vida e o que nos faz atribuir conceitos positivos ou negativos para isto ou aquilo.

A qualidade não existe no mundo. Ela existe em nós. O mundo, as pessoas e as coisas possuem características, e adjetivá-las é um mero recurso da nossa gramática.

Por isso, nestes dias de ausência de felicidade, que não necessariamente significa presença de tristeza, o que me cabe (ou resta) é tecer filosofias próprias, enquanto tento encaixar peças aleatórias em um quebra-cabeça que invento em minha mente.

Opto pela não-felicidade porque, em dias de chuva, talvez o verde da árvore que se encontra encostada na lateral do portão não me pareça tão vivo.

Ou talvez por algum outro motivo que me escapa.

Mas esforço-me ao investir minha atenção na construção de hipóteses que me pareçam plausíveis e que me permitam, pelo menos por enquanto, ver beleza onde ninguém mais vê.

E quem sabe um dia eu ascenda a níveis superiores, quando souber ver beleza nos tons monocromáticos da chuva e no contraste que eles provocam com as cores do que é natural.

É então que concluo que, mesmo sobre o tal tripé, a vida por aqui (dentro e fora de mim) nada mais é do que esta sucessão de fatos, de dias de sol e de chuva, frio ou calor, desprovidos de valor e adjetivo, cujas influências sobre mim e sobre o mundo dependem apenas do ponto de vista.

E tento evitar a conclusão lógica de que é só através deste processo de “positivar” e “negativar” as coisas e as pessoas que podemos ser felizes.

Isto posto, e de volta à realidade mundana do início do texto, aqui estou eu, observando ela brincar alegremente com meu pote de ração. Com o focinho ela derruba todo o conteúdo pelo chão, assustando-se com o barulho que ela mesma causou.

Com a bagunça instalada, agora é hora de redistribuir a aleatoriedade dos pedaços de ração que se espalharam pelo chão do quintal.

Ah, como o sol, o céu azul, o verde vivo das árvores e esta leve brisa são capazes de me deixar pleno e satisfeito. Feliz, num sentimento que emana de algum lugar aqui dentro, capaz de me arrepiar os pelos e a pele, inundando meu corpo com esta leveza que me permite ficar deitado, espectador passivo e satisfeito desta algazarra toda.

Outrora ficaria nervoso com tanta baderna e cobraria medidas enérgicas de algum ser humano.

Ou as tomaria com as próprias mãos (ou patas, ou dentes).

Mas hoje não.

Hoje tudo me parece belo e bom.

Não há nada que desperte em mim sentimento de repulsa ou descontentamento, especialmente com esta criança linda e desajeitada cuja inocência é sua principal qualidade.

Ontem, intrusa.

Hoje, amiga.

E, por fim, vem-me à cabeça um ditado famoso, que provavelmente diziam muito por estas bandas antes de eu nascer: “aos amigos, tudo”.

Quanta verdade em tão escassas palavras.

Aliás, pela eloqüência do presente ensaio, nota-se minha incapacidade de falar tanto em tão pouco.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Há dias. Há tempos.


Há dias em que só há chuva

Há dias em que só chove aqui por estas bandas

E até o verde da planta molhada se tinge do tom monocromático do céu

E são estes tons de cinza que pintam a abóbada que trazem a cor da vida pra terra.

Engraçado. São os contrastes se completando.

Engraçado como há dias em que se percebe a imensidão e complexidade da vida em cada pequeno pedaço do mundo.

Engraçado como há dias em que queremos o que não temos.

Sim, há dias em que há sol e o que eu mais quero é água.

E nos dias de água, como estes, como hoje, eu só queiro deitar e olhar o mundo se molhar.

(enquanto me perco a pensar no sol)

Vez ou outra o vento bate mais forte e desvia algumas gotas em minha direção, como se quisesse me dar o gostinho da água que cai do céu.

Como se enxergar todo este excesso de mundo não me fosse o suficiente.

Ah, é tanto mundo ao meu redor que eu fico tonto.

Há dias em que que há mundo para todos os lados que eu olho.

Tenho pensado bastante e, definitivamente, eu sei muito menos sobre mim mesmo do que eu imaginava.

Há tempos em que só havia respostas.

E há dias, como hoje, em que só há perguntas.

E o sentimento termina onde começa a próxima dúvida.

Sim, há dias em que só há dúvidas.

Duvido, inclusive, se sou realmente eu a escrever e a duvidar de mim e do mundo.

Há dias em que nenhum sentimento é pleno.

Há a sensação de ser e de não ser, uma na metade da outra.

E há dias em que deito e olho para este céu cinza como o de hoje a observar o pensamento se esvair nas gotas que correm apressadas quando alcançam o chão.

E há momentos que duram a eternidade da chama de uma vela acesa sob a chuva de hoje.

E há instantes em que fito as nuvens me perguntando se por trás delas virá o azul do céu e o calor do sol.

Ou se virá mais nuvens, mais cinza.

E se vier mais chuva, que venha.
E nunca se saberá se há dias há tempos.
Ou se hoje, agora.

Pois se há, ou se houve , haverá sempre palavras a serem escritas.
E se há mais palavras, há mundo, há vida.
E ambos só hão de ser, ou de haver, pois há palavras para descrevê-los.

Escrevo, logo existo.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Mundo Cão – Capítulo 1: A Criação



E, no primeiro dia, o deus canino fez xixi em todos os lugares.

(Porque ele não conhecia este novo mundo e precisava marcar seu território)

No segundo dia ele se assustou quando caiu na água e, enquanto o coração tentava escapar pela boca devido à surpresa, sacudiu-se bastante para se secar e escapar do frio, molhando tudo ao seu redor e provocando a primeira chuva naquele novo mundo, que por sua vez criou os rios e lagos.

(Como estava muito escuro, ele não sabia onde terminava a terra e começava a água)

No terceiro dia ele latiu bastante, porque, do nada, do escuro ele fez a luz, para esquentar um pouco o mundo e impedir banhos desnecessários como o de ontem.

(Todos sabem que qualquer cachorro estranha quando alguma característica do ambiente muda, mesmo quando foi ele o causador da mudança)

No quarto dia ele alcançou o máximo do "aperto fisiológico", e fez as outras necessidades que vinha segurando desde o primeiro dia.

(Ah, que alívio!!)

No quinto dia, do “barro”, ele fez o homem.

(Qualquer semelhança não é mera coincidência)

No sexto dia ele não fez a mulher, porque resolveu comer o osso da costela.

(Oras, já se passavam seis longos dias de trabalho sem nenhum petisquinho)

Por fim, no sétimo dia, ele criou o poste, pois não ficava bem fazer xixi em qualquer lugar.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Em vias de metáforas

A vida é um pouco como uma via pública. Rua, viela, avenida.

Se grande ou pequena depende do sujeito.

Do personagem.

E viver é como andar pra lá e pra cá, atravessando as ruas, avenidas e seus semáforos.

Ás vezes com pressa. Outras despretensiosamente.

A disputar com toda gente o espaço que há na calçada nos dias de rush das avenidas comerciais movimentadas.

Ou a caminhar por vias vazias, sob sol ou lua, com a sensação de que tudo é nosso.

(E de que tudo é tanto que tê-lo na sua totalidade significa nada ter).

E as escolhas que fazemos na vida são como aquele dia em que o sinal está amarelo e você se pergunta se vale a pena arriscar uma corrida para se alcançar o outro lado a tempo.

E arriscar-se na vida pode ser comparado com aquela situação em que o semáforo encontra-se no vermelho, prestes a esverdear, e é preciso embrenhar-se por entre os carros, olhando lá e cá, em velocidade elevada, para se alcançar o outro lado, em busca da certeza de se chegar a tempo e a salvo do fluxo.

E ter certeza é como olhar para o sinal verde e saber exatamente para onde se pode ou não ir, sem pressa.

E saber se estamos ou não no passo certo é como o dia em que a calçada está cheia, e nos pegamos, repentinamente, a andar no ritmo da pessoa que está a nossa frente.

Se não temos nossa atenção voltada a nós mesmos, à nossa vida, não nos importamos de ter nosso tempo ditado por outro alguém.

Mas se de repente, mesmo que aleatoriamente, nos damos conta de que a nossa passada não é nossa, é outra, aí buscamos retomar o controle, deixando para trás aquela pessoa que, mesmo sem intenção, nos atrasava a vida.
A nossa vida.

Dizem por aí aos montes que a vida, que é muito, não pode ser só isso.

A metáfora simples do sinal, ou da rua com carros e pessoas, não pode encerrar todos os inenarráveis mistérios da vida.

Ela é, enquanto recurso lingüístico, a saída que o escritor possui para extrapolar ao infinito, sempre atento à intenção primeira de se fazer entender, na busca por fundamentar suas opiniões.

Então a rua, mesmo que seja só a minha rua e que exista apenas na minha imaginação, assim como suas pessoas e semáforos e automóveis, é grande o suficiente para ilustrar o meu ponto sobre a vida.

Nada, nem ninguém, é capaz de dizer onde começa ou termina a minha rua, e, por conseqüência, a minha metáfora sobre ela.

Assim como ninguém pode dizer onde começa ou termina uma vida.

Infinitas em suas grandezas, a rua, a vida e as metáforas de uma e de outra.

Portanto sim, a vida é como a rua, com seus fluxos complexos formados por unidades que andam pra lá e pra cá, rápida ou lentamente, em todas as direções.

A mistura de tijolos, concreto, asfalto.

Carros, caminhões, ônibus, motos, bicicletas, carroças.

Animais, vegetais.

Pessoas.

Ricas, pobres.

Altas e baixas.

Cores de pele que se juntam, a cada momento, cruzando-se em encontros aleatórios, trombadas acidentais.

Peles escondidas sob as mais variadas cores de tecidos.

Uns grossos, que tudo escondem e protegem. Outros quase transparentes.

Tudo junto, promovendo uma dança cuja beleza encontra-se exatamente em sua imprevisibilidade.

Não é possível descrever o todo de uma vida a partir de uma parte isolada de seu contexto, assim como não se pode descrever o trânsito a partir do comportamento de um único automóvel.

O todo, assim como a vida, não é constituído apenas pela soma de suas partes isoladas.

(Não se extrapola o todo a partir da generalização de uma particularidade, isso sim seria diminuir a vida).

Mas sim, e principalmente, pelas relações que elas estabelecem entre si e entre si e o todo que compõe.

O fluxo de pessoas desta nossa (ou só minha?) rua fictícia, que se olhado de cima nos parecerá caoticamente organizado, não é explicável a partir (apenas) da velocidade do andar de cada um que na rua se encontra.

Além das pernas há os braços, as bolsas, os cabelos. Cabeças que pensam um sem número de coisas. Corações que sentem um outro sem número de sensações.

E cada pedacinho de corpo e de pensamento se mistura no universo complexo que define cada ser humano.

E lá estão eles a andar pra lá e pra cá, universos limitados, pessoais, que se influenciam uns aos outros, seja pela velocidade a que se deslocam, seja pelo espaço que ocupam, sejam pelas semelhanças e diferenças que partilham.

Nunca muito de uma coisa ou de outra.

Sempre um pouco de cada.

Em proporções que variam com o tempo e com o contexto que elas estabelecem a partir de suas inter-relações.

Afinal, quem pode dizer o que acontecerá com quem vem atrás no momento em que os óculos daquele senhor de preto caírem no chão e ele se agachar para pegá-los.

Se aquele rapaz apressado, de ouvidos entretidos com seu tocador de músicas, irá trombá-lo ou desviará a tempo.

Ou se apenas diminuirá sua velocidade, o que provocaria uma série de pequenas reações em cadeia entre as pessoas mais próximas a ele, o que, por sua vez, influenciaria outras tantas que vêm atrás destas.

E quanto mais para trás formos na fila, a partir deste primeiro senhor cuja distração provocou a queda de seu pertence, poderemos notar, de pessoa em pessoa, o peso que este fator inicial exercerá no fluxo, sem que possamos inferir o resultado final a partir desta uma parte isolada.

Pois aos mais próximos será imposta uma maior desaceleração (pobre rapaz apressado e distraído).

Mas e aos mais distantes?

E à moça que vem bem atrás, centenas de metros antes daquele ponto, será que por ela algo será percebido se agora os óculos já se encontram novamente no rosto do senhor de vestes pretas?

Nada.

Por ela nada será percebido pois toda onda de desaceleração já terá se dissipado entre os mais próximos do incidente.

Como a onda no mar, que já fora grande, se dissipa ao alcançar a praia.

Ou como um terremoto, que se dissipa quanto mais longe de seu epicentro observarmos.

Ou como a vida. Esta sobre a qual estamos em vias de falar desde o princípio. É assim também na vida, na qual os incidentes, sejam os de natureza negativa ou positiva, costumam ter seus efeitos sentidos com mais intensidade por quem está próximo, esta mesma que se dissipa com o tempo e a distância.

E o todo, que estávamos a observar e a conjecturar sobre quando aqui se começou a falar de ruas e vidas, se configurará em uma nova forma e passará (ou continuará?) a fluir, como se nada tivesse ocorrido.

Como se fosse o mesmo, mesmo sendo outro.

Assim como cada circunstância que nos ocorre na vida nos influencia de forma particular, gerando respostas particulares.

A cada experiência nova, a cada situação inesperada, uma nova configuração se dá e uma nova vida, dali em diante, se inicia.

Como se fosse outra, mesmo sendo a mesma.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

78


São 78 os azulejos que me separam da área gramada do novo quintal desta nova casa para onde me trouxeram.

Sim, mudei de residência sem ao menos ser questionado se este era ou não o meu desejo.

Fui sorrateiramente enganado, e faço questão de descrever o minucioso e frio procedimento adotado pelo meu dono para me trazer até aqui.

Primeiro foi a coleira, que ele pegou do armário da mesma forma que ele sempre faz quando vamos passear. Eu, inocente cachorro que sou, fiquei todo contente.

(É, a freqüência de agitação do meu rabinho não me deixa mentir nestas horas).

Pois bem, a coleira foi colocada e lá fomos nós, pela escada do prédio, em direção ao térreo.

Eu, pensando que iria para mais um agradável passeio.

Ele, ardilosamente me conduzindo para um caminho sem volta.

Foi basicamente este o processo que me trouxe até esta longínqua casa que agora estou aprendendo a chamar de lar. Nenhum canto ou parede tem o meu cheiro, então tudo que me rodeia ainda me parece bem estranho.

O sofá da sala ou mesmo a cama onde agora passei a dormir não me provocam a mesma sensação dos similares anteriores.

Ainda olho para a janela, para a bancada da cozinha, e não me sinto confortável.

Claro que já descobri onde escondem minha comida e meus biscoitos, mas mesmo assim ainda não me sinto na liberdade de ir até lá roubá-los.

Parecerá surpreendente o que se lerá na seqüência, mas até mesmo a liberdade que tenho aqui, com todo este espaço disponível, me parece estranha, sufocante.

Olho para esta imensidão toda e me aumenta a vontade de ficar aqui deitado, sobre a roupa que me deixaram, em cujo tecido está impregnado o cheiro do meu passado.

Ficar aqui, sobre esta camiseta, de olhos fechados, é como ser instantaneamente transportado para a minha casa, para a segurança de um ambiente que eu já conhecia, para todos aqueles cheiros familiares.

Aqui, sobre este pedaço de pano, neste minúsculo espaço entre o sofá e a parede, desfruto de toda a felicidade que meu passado me proporciona.

O passado que um dia foi presente.

O presente que agora é apenas lembrança.

E daqui, deste cantinho de onde escrevo estas palavras, também posso ver o corredor e seus 78 azulejos de comprimento que me conduziriam, se sobre eles estivesse andando agora, ao quintal gramado, com árvores, que se encontra nos fundos desta casa nova.

Ah, todo o espaço que sempre sonhei está aqui, perante meus olhos saudosos, à minha total disposição.

Lembro-me com um leve aperto no peito dos dias longos que passava sozinho na minha outra casa, deitado no canto, sob a mesa, a observar pacientemente o que se sucedia do lado de fora da varanda.

Deitado, lá ficava a sonhar espaços amplos nos quais poderia exercitar todas as minhas vontades, fossem elas fisiológicas ou de outra natureza.

E hoje, cá estou com todo este espaço, e não há nada que eu mais queira ou deseje que este cantinho diminuto, entre o sofá e a parede, deitado sobre a blusa de odores familiares, de olhos fechados a sonhar com as limitações que me eram impostas no passado.

De fardo, hoje as sinto e vejo como aquele momento de felicidade plena que recordamos ter sentido na infância, e o coração bate mais rápido a cada quadro que se sucede em minha memória monocromática.

Ah, que saudade ter o que eu não tenho.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

O mundo sem mim


Eu no mundo


quarta-feira, 22 de abril de 2009

Despedida


Quando se é levado de uma situação a outra, de súbito, não se tem a chance de se despedir da forma adequada. Eu passei por uma situação como esta, de mudança brusca, e tive que vir aqui para poder dizer as palavras que deveriam ter sido ditas em momento diverso deste, e só não foram por total falta de oportunidade. Portanto, já que tive de criá-la, aqui vai a minha despedida, e ela começa onde deve começar: no início de tudo.

Calhou o acaso de aprontar comigo, mandando-me para sua casa. Lá cheguei pequeno, indefeso, mal enxergava aquele novo espaço, aqueles novos objetos, aqueles meus novos pais. Lentamente, e a passos curtos, por razões estritamente anatômicas, fui desbravando aquilo que pra mim era uma imensidão infinita, e porque não potencialmente perigosa. Minha curiosidade me levava para todos os lados e cantos, e qualquer pequeno espaço ou fresta entre os móveis era mais que suficiente para atiçar meus instintos, fazendo com que eu me embrenhasse corajosamente em locais escuros, habitados sabe deus lá por quem, provocando em meu corpo o senso mais genuíno de aventura. Foi assim que descobri aquele buraco da enorme caixa de som cinza que ficava no quarto, e lá passei muitas horas e muitos dias dormindo, com ou sem música, escondido e protegido por aquelas espessas camadas de madeira. Tantas foram as vezes que você me procurou, sem me encontrar, enquanto eu sorrateiramente dormia, escondidinho, lá no fundo.

Mas tenho que assumir que ficava feliz, mas muito feliz mesmo, quando você me encontrava e me pegava no colo. Ah, aquele sentimento de proteção indescritível que seu abraço me transmitia, e eu fazia questão de aninhar a minha cabeça no seu corpo, enquanto você me acariciava com as mãos. Garanto que não há sensação, pelo menos aqui no meu mundo de cachorro, mais agradável do que aquela. Sentir seus dedos se embrenharem por entre meus pelos, e o arrepio que o carinho provocava quando sua mão chegava na minha barriga. Acho que foram estes os momentos em que aprendi o que é ser amado, ou melhor, como é se sentir amado. Não sei se você se recorda das vezes em que eu virava minha cabeça e procurava seu olhar. Queria que você entendesse o quão bem eu estava me sentindo, queria que visse o brilho dos meus olhos, pois me faltavam palavras para descrever um sentimento tão profundo.

E foi assim, ou de alguma forma similar, que eu fui crescendo e aprendendo a amar você.

Aliás, talvez seja esta a hora de afirmar que a cada dia que passava, esperar seu retorno do trabalho se tornava cada vez mais angustiante. E, na mesma proporção, o momento da sua chegada, do nosso reencontro, era a hora mais feliz do meu dia. Era o exato instante em que eu queria voltar pro seu colo, como fazíamos quando eu era pequeno, esperando que você me enchesse de carinho e de beijos. Juro que eram aqueles exatos segundos que me faziam o cachorro mais feliz do mundo.

Não me importaria se o mundo acabasse, pois a coisa mais importante da minha vida estava lá comigo: você!

E os dias se passaram, levando com eles as semanas, os meses e os anos, e os laços que nos uniam se tornavam mais fortes, arraigados e duradouros. Já não me doía tanto a sua ausência.

A vida tem dessas coisas. Ás vezes nos acostumamos com o que nos desagrada apenas porque sabemos que haverá uma recompensa. O reencontro.


As tardes e noites que passava deitado sob a mesa custavam a passar, é verdade, mas minha expectativa já estava ajustada àquela realidade.

E quando eu ouvia a porta do carro bater, um arrepio subia pelas minhas costas e qualquer sentimento de preguiça ou tristeza se esvaia, dando lugar a uma felicidade e excitação indescritíveis, que eram novas e intensas a cada dia. Ouvia a chave na porta e meu coração disparava. Sabia que eram poucos os instantes que me separavam da pessoa que mais amo, e que dali em diante poderia passar horas ao lado dela. Sabia que estava prestes a iniciar a melhor parte do meu dia.

E os seis ou sete anos que estes poucos parágrafos descrevem se passaram, e chegou-se o momento, de haver uma nova mudança. Havia chegado a hora de ir morar com a minha mãe, em sua nova cidade, para a qual mudou-se por motivos profissionais. É verdade que não me perguntaram qual era a minha vontade, a minha opinião. Simplesmente fui colocado no carro e transportado, assim como todo o resto da bagagem.

E aqui estou hoje, com espaço para correr e brincar, um quintal inteiro para chamar de meu.

Alguns metros me separam de uma imensidão de praia e natureza.

Tenho aqui tudo o que sonhava nos incontáveis dias e noites que passei sozinho num apartamento de poucos metros quadrados.

Tenho tudo, mas algo me falta.

Algo me foi tirado contra a minha vontade.

Hoje existe o espaço, a imensidão, a natureza.

Hoje existe a liberdade.

Mas que falta me faz aquele abraço.

Que falta me faz aquele carinho.

Hoje tenho aquela roupa que você deixou, como se eu pudesse, algum dia, me esquecer do seu cheiro.

É com ela que passo meu dia.

É sobre ela que durmo.

É com ela que fecho os olhos e me recordo do passado, da infância que não volta mais.

Que saudade do vão da caixa de som onde dormia quando pequeno.

Que saudade de você me procurando, me pegando no colo.

Que saudade de ouvir o som do carro, do bater da porta, do barulho na chave.

Que saudade de sentir saudade de você.

E de saber que, a qualquer momento, você entraria por aquela porta.

Porta atrás da qual se encontra o passado que tanto me falta.

Passado que não volta nunca mais.

Esta é a vida.

Linda do jeito que é.

Finita e imperfeita.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Metade


(Acordei para mais um dia iguais a tantos que já foram. Iguais especialmente naquilo que os diferem entre si, e que me permitem sentir a passagem de cada um como se fossem únicos. Estou com sono, não me deixaram dormir na cama hoje, e o chão me pareceu mais duro do que o normal. Acordei algumas vezes, vim até a sala, tentei ficar no tapete. Mas nada era como antes. Nem o tapete tão confortável, nem o sono tão pesado. Era tudo pela metade. Era um meio sono num chão meio confortável. Então estou meio acordado, nesta meia percepção de mundo, e escreverei um meio texto sobre quase tudo isso. Ou sobre a outra metade que me escapa)

Hoje eu estava com sono.

Uma preguiça grande, indescritível.

Olhava para fora, via os tons de verde misturados ao concreto humano de várias cores e formas.

O cinza do céu ressaltava os tons monocromáticos da intervenção humana no mundo.

E eu lá, deitado, apreciando o que se pode apreciar deste quadro sem arte alguma.

E pensando que talvez esta falta de arte fosse, na realidade, a arte em sua manifestação mais singela.

Um pássaro pousou na varanda e está a observar-me tanto quando eu o observo.

Ele pega a comida que deixaram pra ele, sem tirar o olho de mim, como que desconfiado da minha calma aparente, devora o que lhe cabe e alça vôo para algum lugar.

Com ele leva parte do que penso e do que sinto.

Mas deixa esta preguiça.

Eu fecho os olhos.

E duvido que possa pensar em mais alguma coisa.

terça-feira, 14 de abril de 2009

"Em Branco"



(Hoje Juca, o cão filósofo, acordou feliz. Foi tomar o desjejum que, embora não tão fresco quanto aquela comida recém saída do saco, foi o suficiente para deixá-lo satisfeito e apto para mais um passeio matinal. No caminho para a varanda, Juca deparou-se com uma folha de papel em branco. Fiquei surpreso pelo fato de algo tão aleatório ter-lhe despertado uma vontade inexplicável de escrever sobre a vida e o mundo e as pessoas. Pois bem, acabei emprestando meu computador meio a contra-gosto, desconfiando, inclusive, que se não o fizesse, o veria escrever da mesma forma, por outros meios).

Escrevo agora sobre um “nada” de assunto. Não tenho sobre o que escrever e portanto falarei sobre a falta. Sobre a ausência.

Ao olhar esta folha em branco eu me lembrei de uma ocasião, há tempos atrás, quando recebi uma nota fiscal do veterinário ,no verso da qual havia um carimbo “em branco”.

Oh, que ironia... justamente o que designa a falta de conteúdo é, por definição, o próprio conteúdo que nega.

Eterno looping tentando injetar sentido naquilo que, outrora, não possuía.

A vontade inconsciente do sistema de se injetar realidade.

O mundo que não existe tentando ser real.

Porque se de fato estivesse em branco, nada deveria estar escrito.

Que tal “a parte deste carimbo, não há mais nada escrito neste papel”.

Argumentem vocês, sábios, que há sentido nisto.

Ou naquilo.

Ora, há sentido em tudo que quisermos que tenha sentido.

90% do mundo vê sentido na religião, no místico.

E nem por isso fica comprovado, de fato, que existe uma coisa ou outra.

E quem sabe nem o mundo exista, senão o que enxergamos e o que interpretamos dele.

Ou melhor, quem sabe o mundo apenas exista porque estamos aqui para enxergá-lo e interpretá-lo.

O que não nos torna especial, diga-se de passagem.

Absurda vontade interminável de ver e criar sentido.

Está em nós o sentido de tudo e de todos. É interno, não externo.

A chuva cai, o sol nasce, a lua reflete. Tudo acontece, exista ou não a nossa necessidade de ver e criar sentido.

E se houvesse um carimbador universal, posto que não há, seríamos nós os destinatários do carimbo celeste “em branco”.

É isso que merecem aqueles que para nada servem ou nada tem a acrescentar.

(“Nós” não. Talvez apenas em mim. Talvez apenas eu)

segunda-feira, 13 de abril de 2009

A dor que nos define



(Hoje eu acordei tristonho. Esqueceram de me dar ração e minha bolinha sumiu por debaixo desta cama gigante e inacessível. Por isto estou triste. Venho pensando que a dor que as pessoas humanas sentem talvez faça sentido. Eles sentem tanto que resolvi partilhar desta dor, sentindo-a eu mesmo. Ora, também sou pessoa, portanto também devo sofrer. O que melhor define uma pessoa do que esta dor existencial? Só eu sei o real significado da expressão “mundo cão”)

Eternamente subjugado ao inferno do meu ser.

Carrego o peso de ser quem sou.

A dor contínua pelo fato de o espelho refletir a minha imagem quando olho pra ele.

Eterna insatisfação por carregar os pensamentos que me pertencem.

O meu que nunca vai ser o outro.

A insatisfação de dar a mim tudo aquilo que disponho.

E de desejar tudo aquilo que não tenho

O Eu que sou e as infinitas possibilidades de quem não fui nem nunca serei.

Este é meu fardo.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Expectativas



Qual será a relação entre a felicidade que buscamos e a nossa expectativa de encontrá-la?

Qual será a relação entre o sucesso que buscamos e a nossa expectativa de atingi-lo?

Aqui, encerrados em nós mesmos, vivemos a pintar os quadros mais lindos sobre o futuro, sobre os sonhos, vontades.
Os valores que nos vendem são a matéria prima, a inspiração. E as cores e formas seguem sendo impressas (por nós?) sem critério.

Mas chega o dia de se comparar o quadro com a vida.

E neste dia conhecemos a decepção.

A vida não é tão colorida, nem tem tantas formas.

O céu está cinza, não azul.

O sol do quadro está atrás das nuvens aqui da realidade de fora.

(Quiçá estas mesmas nuvens que vejo pela janela entreaberta do canto da sala).

As árvores, verdejantes, lindas e oníricas, nada mais são do que galhos secos e tortos e reais.

É tudo uma cópia imperfeita do que esperávamos.

E daí vem a sensação de que falta alguma coisa.

Aquela pequena semente de tristeza que nos invade.

Aquela sensação de que a vida é sem graça, de que tudo não é suficiente, pois não é como esperávamos que fosse.

E culpa-se a tudo e todos por esta ausência.

Quando, na verdade, o problema encontra-se no quadro, não no mundo.

E se o problema está no quadro, então a culpa é do seu autor.

O quadro é como a expectativa.

Ou se aprende a viver com as diferenças entre o que esperamos e o que obtemos, ou só se deve usar as cores que seu mundo possui quando se for pintar o quadro.

Se o seu céu é cinza e suas árvores não são mais que galhos tortos e secos, pinte-os assim.

Espere-os assim.

Viva-os assim.

Pois é no mundo que se vive.

E se ele difere da imagem que você construiu, a culpa é sua.

Faça da sua realidade o seu quadro.

Faça-se a si mesmo pintor e sonhador de pés no chão.

Não coloque o azul no céu se sua vida é chuva e tempestade.

Ame a realidade como a uma obra de arte, mesmo se ao seu redor só houver tons de cinza.

Sonhe (e pinte), o quanto quiser.

E saiba arcar com a responsabilidade de fazê-lo.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Humanos = Irracionais


(Juca, o cão filósofo, estava meio cabisbaixo hoje, minutos antes de sairmos para dar uma volta. Perguntei pra ele se algo havia acontecido, mas ele se limitou a abaixar a cabeça para que eu pudesse colocar a coleira, mantendo-se absorto à minha intenção de interagir e, quem sabe, compreender a razão, ou razões, de tanta introspecção. Descemos e partimos pelas ruas dos arredores do prédio, mas nada daquela carinha de interrogação do Juca melhorar. Em um dado momento, depois de ele ter se embrenhado em uma moita densa de plantas, o mandei sentar e disse “Bom, Juca, ou você abre o jogo comigo e me conta o que está acontecendo, ou voltaremos pra casa agora!”. Ele, calmamente sentado sobre a grama, me contou essa historinha).

Quer saber o motivo da minha interrogação? Bom, pra começar devo dizer que ele não pode ser classificado desta forma, "problema", no singular.

Não há interrogação.

Há interrogações.

Muitas.

Pois bem, isto posto, a “interrogação do dia” nada mais é do que uma dúvida cruel que invadiu meu pensamento quando estava vendo televisão hoje pela manhã.

(PS: Para os desavisados, eu vejo sim televisão. Eu entendo sim o que se passa por lá e até mudo de canal quando o conteúdo me desagrada)

Vi um grupo de pessoas que se encontravam num local amplo, rezando em uníssono com um homem (bispo? padre? pastor?) que comandava o espetáculo e que, ao final da cerimônia, fizeram o sinal da cruz.

Cruz?? Por que cruz??Nada poderia ter me deixado mais estupefato!

O tal jesus, para o qual eles tanto rezam, não foi aquele que morreu na cruz? Ora, e como podem estas pessoas ficarem repetindo o gesto, como se prestassem uma homenagem não ao homem, mas ao seu instrumento de tortura?

Ao meio que o conduziu à morte?

Fiquei me perguntando: bom, quer dizer que se o jesus tivesse morrido numa cadeira elétrica, estariam hoje as pessoas andando com pingentes de cadeirinhas pendurados no pescoço?

E simulariam um choque, tremendo e balançando o corpo loucamente, ao final de cada reza?
Macabro, não?

Por isto que estou com esta cara, saco! E se você não interpela estas pessoas, que fazem a bizarrice de homenagear o instrumento de tortura que fez o tal jesus sofrer, que direito você tem de atrapalhar o meu passeio só por que eu estou indignado??? Agora trate de andar comigo por mais uma hora. Limpe meus dejetos, e deixe-me marcar território em todo poste e moita que eu achar apropriado.

Só voltaremos pra casa quando EU quiser.

Humanos.... humpf!!

segunda-feira, 23 de março de 2009

Vida de cão


(Juca, o cão filósofo, acordou de madrugada e se deparou com a porta aberta. Como estava apertado para fazer suas necessidades, e como cão educado que é, resolveu dar um breve passeio pela rua. Desceu as escadas do prédio e, sorrateiramente, se projetou para fora do edifício por uma das frestas da grade. De súbito, um cheiro interessante atingiu seu sensível focinho, e ele se permitiu estender o passeio para além das necessidades fisiológicas que rapidamente resolveu assim que chegou ao primeiro poste. Resolveu aproveitar a insônia para conhecer como o mundo se mostra numa madrugada qualquer. Ele sai pela rua, sempre à esquerda em relação ao prédio em que mora, e vai reto sem se preocupar muito com a distância. Anda por alguns minutos até chegar a uma praça. Repara que algumas pessoas dormem em condições precárias, e se surpreende com o fato de que, mesmo ele, um simples cachorro, possui melhores condições de vida. Sim, ele está sentindo a dor da humanidade em seu coração canino, o que o faz ficar parado, por algum tempo, observando aquele quadro estático composto pela praça, árvore e pessoas, e tentando encaixá-lo em alguma de suas metáforas mentais. No fundo ele apenas quer compreender o mundo. Sente alguns pingos de água vindos de cima, e presume ser chuva. Guiado pelo seu olfato apurado, corre de volta em direção ao prédio em que mora, mas para em alguns lugares estratégicos para marcar seu território. De volta à sua casa, percebe que todos ainda dormem. Ele se dirige à cama confortável na qual dorme toda noite, mas antes de subir se chacoalha um pouco para tirar aquela pouca água de chuva acumulada. Deita no cantinho de travesseiro que lhe deixaram e demora alguns segundos para alcançar estágios mais profundos do sono, tempo suficiente para ouvir a chuva apertar do lado de fora. Instantes antes do sono definitivo, vem à sua memória de cachorro a imagem daquelas pessoas da praça, às quais caberia melhor a expressão “vida de cão”).

Joaquim acordou. Eram sete e pouco da manhã. Sua cama, ligeiramente suja, encontrava-se molhada de água de chuva. Ele estava deitado na relva, separado da vegetação por finas camadas de um papelão macio e pútrido. Lia-se no papelão “super mega hiper eletrônico, potência máxima”, “este lado para cima”, e havia um pequeno pedaço da etiqueta contendo o preço, na qual só havia restado os zeros do valor total.Como na vida de Joaquim, só havia restado zeros.

Ele se levantou, já com o sol sobre o corpo de cor escura, não se sabe se por sujeira ou outro motivo qualquer. Carros se amontoavam no entorno da praça, num padrão desordenadamente harmônico.

Como não havia sinal de chuva, não havia sinal de banho.

Ele foi até a árvore que ficava na porção sul da pequena praça. Diz-se porção sul porque não há outra maneira de referir-se aquele ponto qualquer daquela praça qualquer, e que pouco importaria se estivesse no norte ou oeste. Quis o acaso que estivesse no sul, e isso nos basta. Estava lá Joaquim sob a sombra da pequena árvore, sentindo a acidez estomacal inundar seu corpo com uma sensação absurda de fome.Não se lembrava da última refeição.

O sinal fecha, e Joaquim vê um carro com crianças da sua idade parado na segunda fila. Elas são gordinhas, e comem deliberadamente os mais diversos tipos de doces e quitutes. A mãe fala ao celular, absorta. Decerto estaria conduzindo os filhos à escola.

Seria mesmo a mãe ou uma reles motorista?

Não. Deveria ser a mãe. Joaquim era pobre, sujo, esfomeado, mas não era burro. Toda aquela pompa, maquiagem, postura e superficialidade são características de pessoas de extrato social superior ao dele. Uma motorista se comportaria de forma diferente, usaria palavras diferentes, e certamente estaria mais preocupada com as crianças. Ela se vira para atrás, profere alguns palavrões seguidos de um “cala a boca”, e volta à sua conversa animada no seu celular de última geração.

Sim, era a mãe. Agora não restavam dúvidas.

Como o sinal mantinha-se fechado, e de nada adiantaria tornar-se verde pois o trânsito cuidaria de preservar a inércia, ele resolveu se dirigir ao carro. Porém, a cada passo que dá vê a janela fechar-se um centímetro, de forma diretamente proporcional. Ele corre. Alcança o automóvel com um pequeno espaço ainda aberto da janela, que lhe permite manter algum contato, e pede por um pouco de comida. A mãe, ou melhor, a mulher que Joaquim supunha ser a mãe, desesperada de medo, atira os restos dos quitutes dos filhos na direção do menino, que vê seu café da manhã atingi-lo no peito e se espalhar pelo chão da rua. As migalhas aleatoriamente espalhadas pelo chão não serão reorganizadas para formar aquele último pedaço de bolo que, há poucos segundos, estava nas mãos daquela obesa criança.

Ele se ajoelha, em meio a todos os carros que agora se movem, e arrasta suas mãos pelo asfalto negro em busca do máximo de migalhas que conseguir recolher, levando-as à boca em seguida. O gosto de açúcar mistura-se à fuligem, ao piche, mas transmite um tênue aspecto doce àquela vida amarga.

Joaquim acorda sentindo pequenos objetos atingindo seu corpo. Está chovendo. Ainda é noite. Um papelão outrora seco o separa da relva. Com fome, pelo menos há chuva. Hoje é dia de banho.

domingo, 22 de março de 2009

Sobre um mundo de animais




(Hoje acordei permeado de um sentimento de grandeza. Por isso vim aqui, escondido, usar o notebook que esqueceram no chão para escrever sobre temas grandiosos. Grandes como a humanidade, como a natureza de tudo o que é humano. E cheguei a conclusão que há muito de irracional na racionalidade humana. As vezes vocês se parecem muito mais comigo do que eu com vocês. Engraçado, quero rir e não sei como. Mas estamos aqui, no mesmo mundo (ou no mesmo barco, para ficar metaforicamente mais interessante e acessível), e portanto sujeitos às mesmas conseqüências desta irracionalidade que partilhamos. Escravos eternos dos nossos instintos)

O que sinto eu neste momento?

Seria vontade de escrever sobre um motivo grandioso, guerras, crises?

Ou mais me importa o que se trava nos limites do meu ser?

Há alguma coisa além destes limites tênues, subjetivos?

As pessoas continuarão morrendo e se matando pelos motivos mais pífios. E meu assombro com o mundo se esvai a cada gota de sangue que se derrama.

Somos animais.

Todos nós, cachorros e humanos, não passamos disto.

Não podemos negar nossa natureza irracional, instintiva.

Queremos poder.

Queremos poder mais.

Queremos ser o macho alfa do bando.

A paz, a igualdade e todo o sonho do conceito de “bem comum” existe, e é praticado, de acordo com os interesses, aliás, na medida direta dos interesses de quem detém o comando.

Se é bom a eles, aos poucos que mandam, e se não ameaça o status quo, o establishment, é bom pra todos.

O tal "bem comum" é um oligarca.

E a história continuará a ser contada pelos vencedores.

Pois quem morre não pode mais falar.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Sobre relações e relacionamentos



(Há pouco ouvi uma conversa telefônica, não sei ao certo se na TV ou na vida real, mas me lembro exatamente do tema. Era sobre relacionamento. Amoroso, no caso. E eu, que não sei muita coisa sobre o assunto, já que aqui, no meu sub-nível de existência, no mundo canino, as coisas são BEM mais simples entre os machos e fêmeas, resolvi me arriscar neste vasto e complexo universo humano de amor e outras relações nem sempre inteligentes que vocês constroem)


Na verdade não é difícil.

É simples. De repente, não há sintonia.

Há na verdade uma zona intermediária que separa a sintonia do caos, da aleatoriedade. E estar nesta zona é encontrar-se, ao mesmo tempo, em sintonia e sem sintonia.

Como uma ligação de celular com um sinal ruim, que é cortada a cada segundo.

Mover-se mais para um lado significa, necessariamente, afastar-se do outro.

E como saber para que lado ir?

A situação, que hoje parece difícil, na verdade é fácil. Triste é apenas aquele sentimento de estar causando "tristeza" na vida alheia.

Triste é saber que se é o fator que “empurra” o outro para a zona intermediária, para longe da sintonia, ao mesmo tempo em que nos esforçamos ao máximo para nos aproximar dela.

Sim, a relação entre duas pessoas é uma troca que se auto e retro-alimenta constantemente.

Logo, a causa do novo fato está atrelada ao resultado do fato imediatamente anterior.

A primeira briga, se por exemplo gerar remorso, afetará a segunda briga nesta exata medida.

Talvez o segredo seja voltar ao estado inicial, imaculado, sempre. Se é que isso é possível.

O problema, talvez, seja saber compreender a diferença entre as vontades e as intenções das pessoas.

Que variam tanto quanto a roupa que elas vestem.

Logo, não é o fim do relacionamento, mesmo que temporário, o real problema.

O cerne da questão está na dificuldade que temos de enxergar o mundo como ele é de fato.

E, obviamente, em como as impressões que este mundo deixa na gente nos afetam.

Pois é possível dizer que somos outro a cada nova impressão adicionada.

E, se não somos mais os mesmos depois de cada nova impressão, geraremos, a cada mudança, novos padrões.

Como controlar este processo aparentemente aleatório?

Talvez o problema não se encontre no mundo.

E talvez a solução esteja em como nós o concebemos.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

A complexidade que emerge das simplicidades



(Hoje eu não estava me sentindo bem. Sei lá, um vazio. Uma falta de algo que eu não sei o que é. Ia pra lá, voltava pra cá. Deitava no tapete, na varanda, na cama. E nada. Nada do sentimento passar. Meus donos, preocupados, me deram comida, um pedaço suculento de carne, um biscoito daqueles que eu mais gosto. Mas não era disso que eu precisava. Mas serei sincero ao assumir que não fiz questão alguma de resistir a nenhum destes pecadinhos que me foram oferecidos. Sou cachorro, não sou hipócrita. E a cada tentativa de me agradar, eles achavam que tudo estava resolvido. Engraçado como essas pessoas humanas enxergam as coisas de forma tão simplista. Para eles um cachorro funciona segundo esta equação: comportamento diferente do padrão significa “cachorro com fome”. E me dão comida. Mas não, não era só fome. E o raciocínio deles prossegue assim “cachorro comeu e não melhorou => biscoito canino”. OK, eu também gosto dos biscoitos, mas não é bem isso. São outras as vontades, as fomes e as sedes. Não as do estômago, obviamente. Mas as do cérebro (engana-se quem pensa que eu acredito em alma). São outras coisas. Não necessariamente coisas novas, desconhecidas. Mas coisas que são frutos das complexas relações que as coisas simples e conhecidas estabelecem entre si. Não são as coisas que me encantam, mas sim suas relações. É aí que está a mágica, se é que há alguma. Não basta me dar comida para saciar minha fome. Não basta água para saciar a sede. A própria língua que vocês falam atribui sentidos diversos a estas palavras, dependendo do contexto. Por que raios deveria ser diferente comigo?!? Que maldito costume de achar que tudo é simplista e que complexo é sinônimo de ininteligível. Enfim, foi sobre isso que escrevi).


Cabisbaixo com o mundo, sigo sentado sem conseguir atingir sucesso na minha eterna tentativa de me concentrar em um assunto qualquer. Nada fica por muito tempo, nem mesmo a idéia que pretende permear este texto. Por isso tenho pouco tempo para escrever sobre esta fagulha de pensamento que ainda existe em mim.


Cabe aqui, nesta efêmera janela de tempo que se abriu para através dela estar apto a expressar o que sinto, dizer que nada do que aqui se diz, ou se escreve, ou os dois, tem utilidade para qualquer outra pessoa que não a mim mesmo. Se é que há alguma utilidade de fato.


Mas, curiosamente, não é que me ocorre uma ponta de surpresa ao ler o que escrevo? Como se pudesse ficar surpreso com o que sei que estou pensando.


Talvez ver um pensamento traduzido em palavras seja diferente. É como se o mesmo fosse outro.


Escrevo o que sinto de forma distinta. Meus olhos vêem a descrição do que sinto de forma diferente dos meus outros sentidos, e talvez seja este o fato que intrigue há tanto tempo a humanidade.


O que é sentir ou pensar se não uma interação complexa entre os sentidos simples do corpo humano? Como descrever tão bem um arrepio que se sente perante uma pessoa querida que não se vê há tempos?


Ler algo como “estou arrepiado” não provoca o mesmo efeito de sentir o tal arrepio.


Quantas palavras são necessárias para se fazer iguais às sensações provocadas por um sentimento?


Como reproduzir as reações químicas necessárias que nos fazem sentir, apenas com símbolos e signos colocados de forma ordenada em nossa frente, numa folha de papel ou em um blog da internet?


Será a soma das partes diferente do todo que elas formam?


Será que a linearidade, o simplismo, esta visão mecanicista, pseudo-newtoniana, estaria fadada a perecer perante à complexidade (inteligível) do mundo?

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O auto-processo de um auto-engano



(Hoje o Juca, o cão filósofo, estava introspectivo. Achei que gostaria de escrever sobre algo. Até coloquei o notebook ligado na frente dele. Mas não adiantou. Ele saiu de seu cantinho e foi para algum outro lugar, queria ficar sozinho. Se ele escreveu algo ou não, eu não sei. O computador continua ligado lá na sala. Já o ensinei a postar os textos...)


Se escrever sobre qualquer assunto fosse o suficiente para renovar minha vontade eterna de falar sobre tudo que sinto e penso, teria escrito um sem número de contos e textos. Quiçá livros. Obras inteiras, vastas, volumosas.
Mas não.

Escrever alivia a angústia de ter o que falar. E o curioso, e paradoxal, é que, se não tenho esta angústia, também me foge a vontade de me expressar.

Portanto, o ato de escrever significa, pra mim, o início do não escrever.

É a causa retroalimentando sua própria destruição.

É a relação de reciprocidade que o início estabelece com seu próprio fim.

O remédio para a minha angústia é o mesmo causador do seu início.

Como se um antibiótico fosse a própria bactéria a qual se propõe a eliminar.
Pois se paro de escrever, me angustio mais. Se me angustio mais, sinto mais vontade de escrever, e assim o faço simplesmente para parar em seguida, quando a angústia se esvai. E tudo retorna ao início.

Este é o processo cíclico da relação que estabeleço com a minha angústia psicológica. Se o há, sobre seu conteúdo escrevo. Escrevendo, o incômodo se esvai, levando consigo as palavras.

É o eterno recomeço, aquele sobre o qual tanto já se falou nestes e em outros tempos.

Entre devaneios e pausas, descobri uma solução ardilosa, por assim dizer. Ou engenhosa, se preferir. Paradoxal, sem dúvida. E aqui estou eu a contornar a questão fazendo uso da mesma técnica: se com a escrita a angústia se vai (ora, para onde iria?), sobre sua partida escreverei, pois estão se esvairá a partida e a angústia não mais poderá ir para nenhum outro lugar que não a minha mente.

Engano a angústia, tomando-lhe a liberdade de partir.

E fazendo isto prolongo meu sofrimento.

Engano a mim mesmo duas vezes.

E sigo-o fazendo por todo sempre.

Saber enganar-se é, em essência, saber ser feliz.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Sobre a intolerância e a incompreensão que assolam a humanidade

(Hoje meu dono pediu um favor pra mim. Pediu para que eu cedesse um post do meu blog para que ele pudesse externar sua indignação para com uma coluna de cunho preconceituoso que foi publicada pelo Sr. Cláudio Lembo no sítio "Terra Magazine". Obviamente que fui ler a coluna antes de dar o meu parecer favorável à utilização ou não do meu blog. Aquele senhor é criativo e capaz de enumerar algumas das maiores inverdades. E demonstra, claramente, seu preconceito e falta de respeito para com as pessoas que pensam de forma diferente da dele. Uma pena que o povo desta cidade esteja sujeito a um pensamento tão obtuso como o dele. Sorte a minha que sou cachorro. Aí vai a opinião dele. Do meu dono, claro. Opinião da qual partilho, diga-se de passagem. E que deus proteja a democracia)

Foi com tristeza que li a última coluna do Sr. Claudio Lembo, figura expressiva no mundo político e jurídico de São Paulo, inclusive ocupando o cargo de governador, que pretendeu associar diversos aspectos negativos da sociedade mundial atual, como o consumismo capitalista, alem de todas as mazelas do mundo, a um eventual crescimento do ateísmo em países do primeiro mundo.
Aliás, além de preconceituosa, tal coluna faz assertivas no mínimo precipitadas, especialmente quando associa, por exemplo, "pensamentos ateus" com práticas de "hedonismo selvagem". Não me arrisco nem a solicitar a bibliografia a partir da qual o Sr. Claudio Lembo extraiu tais dados. Suas afirmações, antes de serem frutos de pesquisa científica, são originárias de sua intolerância, característica esta bem comum entre pessoas religiosas e responsável por diversos dos mais graves problemas que já assolaram a humanidade, do passado longínquo até os dias atuais.
Uma pena que um espaço tão democrático e laico como o "Terra Magazine" tenha publicado um conteúdo como este.
Vale ressaltar, inclusive em nome da democracia que defendo, que o Sr. Lembo tem todo o direito de acreditar ou não em deus, ou em qualquer outra coisa que julgue digna e merecedora de sua fé. Mas não tem direito, em nenhum momento, de proferir palavras tão preconceituosas e mal embasadas contra um certo grupo de pessoas especificamente pela natureza de sua fé, ou, no caso, pela ausência dela.
O preconceito demonstrado pelo autor é tamanho que o cega para fatos corriqueiros na história da humanidade que nos mostram um cenário diametralmente oposto ao descrito por ele em sua coluna.
As mazelas do mundo atual e os problemas que assolaram a humanidade ao longo de sua história foram realmente causados pelos ateus? Ou será que eles tem uma relação mais “íntima” com a religião, especialmente com a tal religiosidade ocidental, mencionada pelo Sr. Lembo?
Vamos aos fatos.
Um breve e não muito aprofundado estudo das religiões, especialmente os grandes monoteísmos “ocidentais”, nos mostram o quão recheadas estão, por exemplo, das tais práticas "hedonísticas e selvagens", mencionadas pelo autor. Devo aqui enumerar os casos de violência sexual, abusos, mortes, guerras e, claro, gastos exorbitantes? Quem, durante grande parte da história européia, deteve mais de um terço das terras daquele continente, enquanto a imensa maioria do povo vivia em condições de miséria, em épocas que precederam o iluminismo? Foi uma instituição atéia que recebeu terras italianas, isenção de impostos e repasse de tributos, ganhando dinheiro a partir de cidadãos que durante anos pagaram (e ainda pagam, pasmem!) “compulsoriamente” para esta instituição? Foi esta mesma instituição aquela capaz de fazer "vistas grossas" ao crescimento de Hitler e Mussolini? Qual evento militar, especialmente os de grandes proporções, que assolou a humanidade, que não foi causado por conflitos religiosos, e mesmo por uma vontade da própria Igreja Católica de aumentar seus domínios, seu poder, sua influência? Ou será que o Sr. Lembo conhece algum ateu que seqüestra aviões e os conduz contra prédios?
Ora, é extensa a lista de agravantes contra a religião e suas práticas. Posso ficar aqui descrevendo inúmeros casos, uns mais famosos do que outros, mas todos deixando claro que quem promove guerra, intolerância, mortes, "consumismo", "materialismo", "niilismo" e "hedonismo", para usar alguns dos termos citados pelo Sr. Lembo, é justamente a religião, e não a ausência dela, como, equivocadamente, quer nos fazer acreditar o autor daquela coluna.
A campanha citada por ele em sua coluna, inclusive, possui em seu âmago democracia, respeito e tolerância, características estas que faltaram ao colunista em questão.
Aliás, infelizmente, tem sido algo corriqueiro este acesso de intolerância por parte de algumas pessoas religiosas quando outros cidadãos expressam opiniões diferentes.
(Diga-se de passagem, e esta afirmação é de enorme importância, que os ateus não consideram que todas as pessoas religiosas partilhem de uma postura preconceituosa, belicosa, intolerante).
Quer uma amostra que comprova esta minha última afirmativa, a que veio antes dos parenteses supra destacados? Então vamos voltar ao texto do Sr. Lembo.
Não satisfeito em atribuir ao ateísmo a culpa por todo o problema que o sistema capitalista tem enfrentado, o Sr. Lembo ainda vai mais longe. Ignorando a riqueza da Igreja Católica, de seus bancos existentes dentro das fronteiras intransponíveis do Vaticano e que investem os bilhões de dólares em mercados mundiais, visando ao lucro, obviamente, o autor ainda classifica os cidadãos ateus como "individualistas" e "niilistas", como se fossem estes últimos os causadores da crise, do consumismo exacerbado que caracteriza nossa sociedade.
Ora, Sr. Lembo, houve algum personagem histórico mais niilista e individualista que o Sr. Bush, religioso fervoroso que fazia tudo em nome de deus?
Ou o senhor poderia nos contar o que fez a igreja católica contra os nazistas e fascistas na época da segunda grande guerra, mais especificamente a natureza da relação daquela instituição com o ditador Mussolini?
E as crises da igreja católica, em épocas passadas, por causa do dinheiro que geravam com a venda de imagens?
O que tem o Sr. Lembo a dizer sobre a FORTUNA que a Igreja Católica possui, parte dela fruto de impostos específicos pagos pelos cidadãos italianos, prática esta instituída na época de Mussolini, figura política conhecida por suas práticas "individualistas", e contra quem nada fez para deter a ascensão?
Enfim, diante de alguns poucos fatos, fica claro o “equívoco” do autor ao tentar tornar o ateísmo uma seita responsável por todos os problemas existentes em nossa sociedade. O Sr. Lembo trata desrespeitosamente aqueles que exercem o direito democrático de não possuírem crença religiosa, inclusive como se quisessem recrutar novos "servos" e dominar o mundo, numa tentativa mesquinha de atribuir aos ateus uma prática corriqueira de alguns religiosos. São estes últimos que promovem passeatas pelas cidades, que usam a mídia extensivamente atrás de novos fiéis, que cobram dinheiro de seus seguidores por um lugar no céu ou que demonstram toda sua intolerância perante uma opinião diferente.
Aliás, qualquer semelhança com o conteúdo da coluna do Sr. Cláudio Lembo (não) é mera coincidência.
Por fim, gostaria que fosse registrada a minha manifestação e, em nome da democracia e laicicidade do Estado Brasileiro, fosse publicada esta "réplica". Seria bom, inclusive, que informassem ao senhor autor de que ateus são aqueles seres humanos que, do alto do gozo dos seus direitos constitucionais, olham para o mundo e, a partir do pouco de inteligência de que são dotados, enxergam sua beleza sem precisarem de "algo mais".
Quiçá a imensa maioria do mundo também fosse capaz de usar a inteligência de uma forma mais agregadora, compreensiva, e não em prol de pensamentos e atitudes intolerantes e preconceituosas.
Inclusive o Sr. Lembo, figura das mais expressivas e dotada de notável capacidade intelectual, mas que infelizmente não fez uso pleno de suas faculdades em sua última coluna.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Sobre as regras, exceções e a ausência de intenção



(Hoje está frio. Não sei se de fato está ou se sou só eu que sinto (e há diferença entre um e outro?). Na verdade, me parece que, para a época do ano, se frio estiver, hoje é uma exceção à regra. À normalidade da expectativa que todos têm em relação à época do ano. Ora, de quantas exceções é feito um mundo como este? Qual é o número máximo de exceções que um determinado assunto pode possuir antes de ser promovido ao status de "regra"? Precisa chover, ventar e fazer frio por quantos dias durante o verão para que ele vire inverno? Seria a diferença apenas uma questão de definição, de denominação? E se é este o caso, se a diferença nada mais é que o rótulo que as pessoas humanas colocam, por que tanta intolerância, tanta incompreensão? E, afinal, que diferença faz para este simples cachorro o nome que as pessoas humanas deram para isso ou aquilo? O que importa é que estou deitado aqui embaixo da minha mesa, e estou com frio. Deixaram a porta da varanda escancarada e não tem ninguém para fechá-la pra mim. Mas não acho que meus donos sejam maus ou relapsos, não acho que eles tenham feito isso (ou qualquer outra coisa) por má intenção. Eles simplesmente são humanos, às vezes mais preocupados com eles, outras o inverso disso. E é justamente neste momento de "auto-foco" que o mundo que os rodeia mais sofre. OK, não necessariamente o mundo todo. As vezes a única vítima é um animalzinho como este que vos fala. Mas não fico triste. Faz parte e eu sou feliz assim. Sabe por quê? Porque sei que o mundo é assim, sei que as coisas são assim e sei que é isso que devo esperar do mundo. Por isso sou feliz. Alguns dias do verão serão frios e chuvosos, e o inverno tem igual probabilidade de trazer sol e calor. Decerto esquecerão a porta fechada em um dia bem quente, e tornarei eu a escrever sobre o sofrimento diametralmente oposto ao de hoje do qual serei vítima. E sempre que eles chegarem aqui em casa, na volta do trabalho, vou fazer a mesma festa. Vou pular, abanar meu rabo, tentar beijar-lhes a fronte e deitar, de barriga pra cima, para que me façam carinho. E aquele vai ser o melhor carinho da minha vida. Tenha ficado a porta aberta ou fechada. Faça chuva ou sol. Porque é assim que eu amo meus donos, e é assim que eles me amam. Porque o mundo é assim e é só isso que importa.)


O vento que emana da janela e dobra os papéis da mesa o faz sem intenção.

O sol que queima o tijolo e o concreto que reveste a parede do prédio de frente à minha varanda o faz sem intenção.

A fome que mata as pessoas do mundo o faz sem intenção.

A planta que cresce na relva, ou no pequeno espaço que há entre aqueles dois azulejos, o faz sem intenção.

A mão que mata, que acaricia, que alimenta, que agride ou que escreve, o faz sem intenção.

O mundo se faz sem intenção.

O mundo se faz por aqueles que acham que ele é Feito por Outro.

Há apenas a intenção de se inventar uma intenção por trás de tudo.

E há também um vazio dentro de cada pessoa.
Somos metade pensamento, enquanto tentamos entender o mundo.
Mas na outra metade somos vazio, que nada mais é do que todo o resto do qual não temos consciência, e como nos falta humildade para reconhecer nossa limitação e nossa insignificância, preenchemos com ignorância, as vezes a um custo altíssimo.

E este vazio é o que mais nos pesa.

Há quem ache isso a causa.

E há quem não ache nada.

Que diferença faz?

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

O complexo que permeia o simples


(Hoje acabou a luz aqui nas redondezas. Tudo ficou escuro de repente. Sorte a minha que enxergo melhor do que vocês. Mas me peguei pensando enquanto andava pela casa “por que enxergo essas coisas desse jeito? Como é o mundo se eu ficar de olhos fechados? Ele existe? Ou ele se forma, repentinamente, a cadê vez que eu abro os olhos?")


As luzes que adentram a sala, difusas, se embaralham em padrões aleatórios e esbarram em objetos e anteparos que encontram pelo caminho.

Que sei eu delas, e o que elas são pra mim além de raios, ondas ou seja lá qual outro padrão físico que invade meus olhos, sem a minha permissão prévia, e me permite enxergar o que me rodeia?

Quiçá enxergasse eu o que realmente é o mundo em si. Que enxergo eu além de reflexo?

O mundo, tal como o vemos, é um reflexo de alguma coisa, por definição.

E o padrão complexo de comportamento da luz é capaz de nos dar detalhes mínimos de cada coisa que nos rodeia.

A desordem que promove a ordem.

O caos que organiza.

A complexidade que transmite a idéia absurda de (uni)linearidade.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009


Pensamentos de um dia preguiçoso

(Juca, o cão filósofo, acordou hoje com um pouco de preguiça, e pediu para que eu anotasse o que ele iria ditar. Quem sou eu para lhe negar alguma coisa? A cada palavra escrita ia me surpreendendo. Positivamente, claro. E não é que aquele cachorro pensava umas coisas interessantes? Dei um sorrisinho após o terceiro parágrafo, e fui interpelado por ele “do que está rindo? Achou que eu fosse uma máquina de latidos e dejetos?”. Não, Juca, longe de mim. Engoli os outros sorrisos que estavam na fila, e tratei de escrever o texto até o fim. Ria por dentro, pra mim. Interessante poder partilhar tantas coisas com um cachorro. Acho que até me senti mais humano. Ao final do ditado, ele me pediu uma última coisa: por favor, tire os “au” do texto, para não ficar muito repetitivo)


Cadeiras perdidas num emaranhado de espaços vazios, outrora cheios de mesas e pessoas. São as mentes inquietas que fervem o ar gélido desta manhã não tão fria, enquanto pensam em todas as possibilidades existentes, de tudo o que não foi e, provavelmente, nunca será. São estas pessoas, que hoje estão aqui, ao meu redor, que sonham suas decepções e vontades. Externam sorrisos, olhares, expressões, enquanto mantém para si mesmas todo o resto.
E é sempre este resto o que mais importa.
O que faço eu aqui?
Eu, que sou um pouco de tudo isso que acabo de descrever, talvez com mais decepções, menos vontades. Ou o inverso. Inverso do espaço. Inverso das pessoas. Inverso de mim mesmo. O contrário da descrição que vaza da minha cabeça e flui, na forma de impulsos elétricos, através dos dedos que digitam estas palavras. Escrevo, portanto, sem saber ao certo quem sou e o que sou, mesmo havendo um sentimento de unidade dentro de mim.

As cadeiras, as mesas, os papéis são os itens que preenchem este espaço que me rodeia. Mas bem poderiam ser outros tantos objetos, de outras tantas cores que não este marrom madeira ou branco papel. Mas o que seriam eles, se diferentes fossem, mais do que um mesmo preenchimento? Objetos diferentes, mas uma mesma função. Iguais, portanto, em sua diferença.

Diferente eu, então, disto que me rodeia? Diferente, eu, destes que me rodeiam?

Inversamente diferente até o ponto em que me torno igual?

Onde começa o início de mim e onde termina o meu final? Onde acaba o eu e começa o não-eu?

Quem sou eu (versao completa)

Como me impediram de postar quem sou eu no espaço reservado para isto, aí do lado esquerdo, resolvi me utilizar deste outro espaço, destinado a coisas mais importantes do que falar sobre a minha "pessoa".

Quem sou eu? Algo próximo do que se descreve abaixo desta frase que termina neste ponto final.

Olá, eu sou o Juca. Me disseram que para fazer sucesso é preciso ter um nome bonito, algo chamativo, pop, universal. Mas eu não sou muito bom nisso, afinal sou um simples cachorro vira-lata que vive numa casa normal, com donos normais. Mas eu sou curioso, chato e prepotente ao ponto de me achar uma pessoa. Me acho várias outras coisas também, menos humano. Isso nunca. A parte do que sou, existe o eterno deleite que a observação do mundo, das coisas e das pessoas me causa. Me divirto, me encanto, me entristeço e me inspiro só de observar tudo o que me rodeia. Pode ser essa parede branca ou o tampo de vidro sob o qual me deito todos os dias. Mas, claro, o que mais me chama atenção são as pessoas humanas, suas interações entre si e com o mundo. Sou tão marcado por tudo isso que, num dado momento da minha vida, resolvi parar de “apenas” pensar e começar a escrever estas minhas impressões. Não porque as julgue importantes. Não, longe disso. Apenas porque elas são tantas que estão causando um certo incômodo aqui dentro do meu cérebro, que é pequeno, como todos sabem. Um minuto, ouvi um barulho, vou até a porta latir (será que eu devo escrever “latidos ao fundo” para transmitir mais veracidade a este relato?). Pronto, voltei. Então, cansado que estou de apenas olhar e pensar, resolvi vir aqui falar e dividir, porque acho que é disto que o mundo precisa, diálogo, comunicação, divisão. Não pela importância do conteúdo que quero transmitir. Quantas e quantas pessoas já pensaram, pensam e vão pensar sobre isso. Quantos gênios já escreveram as mais belas obras sobre estes temas que nos permeiam (obras que não li, por motivos caninos óbvios). Mas, no fundo, nada é de ninguém e tudo é de todo mundo (se é que há alguma outra afirmação mais inócua que esta, por favor, me avisem). Porém, embora ache que tudo é de todos, tenho que admitir que existe uma exceção: a minha bolinha. Ela é só minha. Logo, como eu tenho a minha exceção, creio que todo mundo tenha a sua e, de tanta exceção, vivemos num mundo tão complicado e dividido. Todo mundo se matando para delimitar suas posses, o que é seu e o que pode ou não ser do outro. Todo mundo querendo tudo pra si (ah se todo mundo tivesse uma bolinha como a minha...). Ou vocês acham que eu não vejo TV, não ouço rádio, não acesso a Internet? Sou um cachorro moderno. Estou conectado ao mundo, das mais variadas formas. Já mandei até email para o SAC da fabricante da minha ração! Sou tão moderno que as dores do mundo que afetam vocês, pessoas humanas, passaram a me afetar também. Eu também sofro, choro por um sem motivo de coisas. Também tenho depressão. Minhas crises existenciais são tão extensas e profundas quando as de vocês. Já me espantei com Sócrates, Aristóteles. Já passei por Locke, Hume. Até Santo Agostinho já me tomou tempo. Mas superei esta fase, e também já gritei aos quatro ventos através dos meus latidos “Deus está morto”. Aliás, assim também falou Zaratustra, com razão e bem antes de mim. Já partilhei da náusea de Sartre, e do pessimismo realístico e mal-interpretado de Schoppenhauer. Por essas e outras me chamam de Juca, o cão filósofo. E como achei que houvesse um pingo de “marketing” nesta alcunha, resolvi adotá-la, e assim me descreverei daqui pra frente. Espero poder dividir e comunicar o que sinto e o que penso. E, pra terminar, não se surpreenda se os sentimentos e os pensamentos de um cachorro como eu não forem tão diferentes dos seus.