quarta-feira, 22 de abril de 2009

Despedida


Quando se é levado de uma situação a outra, de súbito, não se tem a chance de se despedir da forma adequada. Eu passei por uma situação como esta, de mudança brusca, e tive que vir aqui para poder dizer as palavras que deveriam ter sido ditas em momento diverso deste, e só não foram por total falta de oportunidade. Portanto, já que tive de criá-la, aqui vai a minha despedida, e ela começa onde deve começar: no início de tudo.

Calhou o acaso de aprontar comigo, mandando-me para sua casa. Lá cheguei pequeno, indefeso, mal enxergava aquele novo espaço, aqueles novos objetos, aqueles meus novos pais. Lentamente, e a passos curtos, por razões estritamente anatômicas, fui desbravando aquilo que pra mim era uma imensidão infinita, e porque não potencialmente perigosa. Minha curiosidade me levava para todos os lados e cantos, e qualquer pequeno espaço ou fresta entre os móveis era mais que suficiente para atiçar meus instintos, fazendo com que eu me embrenhasse corajosamente em locais escuros, habitados sabe deus lá por quem, provocando em meu corpo o senso mais genuíno de aventura. Foi assim que descobri aquele buraco da enorme caixa de som cinza que ficava no quarto, e lá passei muitas horas e muitos dias dormindo, com ou sem música, escondido e protegido por aquelas espessas camadas de madeira. Tantas foram as vezes que você me procurou, sem me encontrar, enquanto eu sorrateiramente dormia, escondidinho, lá no fundo.

Mas tenho que assumir que ficava feliz, mas muito feliz mesmo, quando você me encontrava e me pegava no colo. Ah, aquele sentimento de proteção indescritível que seu abraço me transmitia, e eu fazia questão de aninhar a minha cabeça no seu corpo, enquanto você me acariciava com as mãos. Garanto que não há sensação, pelo menos aqui no meu mundo de cachorro, mais agradável do que aquela. Sentir seus dedos se embrenharem por entre meus pelos, e o arrepio que o carinho provocava quando sua mão chegava na minha barriga. Acho que foram estes os momentos em que aprendi o que é ser amado, ou melhor, como é se sentir amado. Não sei se você se recorda das vezes em que eu virava minha cabeça e procurava seu olhar. Queria que você entendesse o quão bem eu estava me sentindo, queria que visse o brilho dos meus olhos, pois me faltavam palavras para descrever um sentimento tão profundo.

E foi assim, ou de alguma forma similar, que eu fui crescendo e aprendendo a amar você.

Aliás, talvez seja esta a hora de afirmar que a cada dia que passava, esperar seu retorno do trabalho se tornava cada vez mais angustiante. E, na mesma proporção, o momento da sua chegada, do nosso reencontro, era a hora mais feliz do meu dia. Era o exato instante em que eu queria voltar pro seu colo, como fazíamos quando eu era pequeno, esperando que você me enchesse de carinho e de beijos. Juro que eram aqueles exatos segundos que me faziam o cachorro mais feliz do mundo.

Não me importaria se o mundo acabasse, pois a coisa mais importante da minha vida estava lá comigo: você!

E os dias se passaram, levando com eles as semanas, os meses e os anos, e os laços que nos uniam se tornavam mais fortes, arraigados e duradouros. Já não me doía tanto a sua ausência.

A vida tem dessas coisas. Ás vezes nos acostumamos com o que nos desagrada apenas porque sabemos que haverá uma recompensa. O reencontro.


As tardes e noites que passava deitado sob a mesa custavam a passar, é verdade, mas minha expectativa já estava ajustada àquela realidade.

E quando eu ouvia a porta do carro bater, um arrepio subia pelas minhas costas e qualquer sentimento de preguiça ou tristeza se esvaia, dando lugar a uma felicidade e excitação indescritíveis, que eram novas e intensas a cada dia. Ouvia a chave na porta e meu coração disparava. Sabia que eram poucos os instantes que me separavam da pessoa que mais amo, e que dali em diante poderia passar horas ao lado dela. Sabia que estava prestes a iniciar a melhor parte do meu dia.

E os seis ou sete anos que estes poucos parágrafos descrevem se passaram, e chegou-se o momento, de haver uma nova mudança. Havia chegado a hora de ir morar com a minha mãe, em sua nova cidade, para a qual mudou-se por motivos profissionais. É verdade que não me perguntaram qual era a minha vontade, a minha opinião. Simplesmente fui colocado no carro e transportado, assim como todo o resto da bagagem.

E aqui estou hoje, com espaço para correr e brincar, um quintal inteiro para chamar de meu.

Alguns metros me separam de uma imensidão de praia e natureza.

Tenho aqui tudo o que sonhava nos incontáveis dias e noites que passei sozinho num apartamento de poucos metros quadrados.

Tenho tudo, mas algo me falta.

Algo me foi tirado contra a minha vontade.

Hoje existe o espaço, a imensidão, a natureza.

Hoje existe a liberdade.

Mas que falta me faz aquele abraço.

Que falta me faz aquele carinho.

Hoje tenho aquela roupa que você deixou, como se eu pudesse, algum dia, me esquecer do seu cheiro.

É com ela que passo meu dia.

É sobre ela que durmo.

É com ela que fecho os olhos e me recordo do passado, da infância que não volta mais.

Que saudade do vão da caixa de som onde dormia quando pequeno.

Que saudade de você me procurando, me pegando no colo.

Que saudade de ouvir o som do carro, do bater da porta, do barulho na chave.

Que saudade de sentir saudade de você.

E de saber que, a qualquer momento, você entraria por aquela porta.

Porta atrás da qual se encontra o passado que tanto me falta.

Passado que não volta nunca mais.

Esta é a vida.

Linda do jeito que é.

Finita e imperfeita.

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