quarta-feira, 29 de abril de 2009

78


São 78 os azulejos que me separam da área gramada do novo quintal desta nova casa para onde me trouxeram.

Sim, mudei de residência sem ao menos ser questionado se este era ou não o meu desejo.

Fui sorrateiramente enganado, e faço questão de descrever o minucioso e frio procedimento adotado pelo meu dono para me trazer até aqui.

Primeiro foi a coleira, que ele pegou do armário da mesma forma que ele sempre faz quando vamos passear. Eu, inocente cachorro que sou, fiquei todo contente.

(É, a freqüência de agitação do meu rabinho não me deixa mentir nestas horas).

Pois bem, a coleira foi colocada e lá fomos nós, pela escada do prédio, em direção ao térreo.

Eu, pensando que iria para mais um agradável passeio.

Ele, ardilosamente me conduzindo para um caminho sem volta.

Foi basicamente este o processo que me trouxe até esta longínqua casa que agora estou aprendendo a chamar de lar. Nenhum canto ou parede tem o meu cheiro, então tudo que me rodeia ainda me parece bem estranho.

O sofá da sala ou mesmo a cama onde agora passei a dormir não me provocam a mesma sensação dos similares anteriores.

Ainda olho para a janela, para a bancada da cozinha, e não me sinto confortável.

Claro que já descobri onde escondem minha comida e meus biscoitos, mas mesmo assim ainda não me sinto na liberdade de ir até lá roubá-los.

Parecerá surpreendente o que se lerá na seqüência, mas até mesmo a liberdade que tenho aqui, com todo este espaço disponível, me parece estranha, sufocante.

Olho para esta imensidão toda e me aumenta a vontade de ficar aqui deitado, sobre a roupa que me deixaram, em cujo tecido está impregnado o cheiro do meu passado.

Ficar aqui, sobre esta camiseta, de olhos fechados, é como ser instantaneamente transportado para a minha casa, para a segurança de um ambiente que eu já conhecia, para todos aqueles cheiros familiares.

Aqui, sobre este pedaço de pano, neste minúsculo espaço entre o sofá e a parede, desfruto de toda a felicidade que meu passado me proporciona.

O passado que um dia foi presente.

O presente que agora é apenas lembrança.

E daqui, deste cantinho de onde escrevo estas palavras, também posso ver o corredor e seus 78 azulejos de comprimento que me conduziriam, se sobre eles estivesse andando agora, ao quintal gramado, com árvores, que se encontra nos fundos desta casa nova.

Ah, todo o espaço que sempre sonhei está aqui, perante meus olhos saudosos, à minha total disposição.

Lembro-me com um leve aperto no peito dos dias longos que passava sozinho na minha outra casa, deitado no canto, sob a mesa, a observar pacientemente o que se sucedia do lado de fora da varanda.

Deitado, lá ficava a sonhar espaços amplos nos quais poderia exercitar todas as minhas vontades, fossem elas fisiológicas ou de outra natureza.

E hoje, cá estou com todo este espaço, e não há nada que eu mais queira ou deseje que este cantinho diminuto, entre o sofá e a parede, deitado sobre a blusa de odores familiares, de olhos fechados a sonhar com as limitações que me eram impostas no passado.

De fardo, hoje as sinto e vejo como aquele momento de felicidade plena que recordamos ter sentido na infância, e o coração bate mais rápido a cada quadro que se sucede em minha memória monocromática.

Ah, que saudade ter o que eu não tenho.

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